Não Existe Fila Preto



Paulo Santos Cruz

 
Acusam-me de incoerente por haver aceito a cor preta no Fila em artigo publicado nos idos de 1951 e, agora, por considerá-la impura.
Realmente naquela época escrevi o que então via pelas fazendas onde procurava Filas, cachorros bravos e com natural instinto de guarda, para proteção de minha casa e da minha coleção de pássaros.
O que entendia então sobre cães? Nada. Sabia apenas que tinha quatros pés. Qualquer cão grande e orelhudo, numa fazenda de criação de gado, para mim, era um Fila. Não havia padrão oficial da raça, logo, não teria respaldo algum se negasse pureza a qualquer detalhe somático. Os únicos, no mundo, autorizados a falar sobre Fila, naqueles tempos, eram os seus criadores, aqueles fazendeiros que chamavam a todos de “cabeçudos”, afirmando-os puros Filas.
Embora inteiramente leigo, já notava diferença nos poucos pretos que encontrava, tanto que nunca trouxe um sequer. Entretanto, desconhecendo detalhes rácicos, não consegui definir essas diferenças. Só trouxe amarelos – então lá qualificados como “baios de boca negra” – e rajados, lá definidos como “araçás”. Só trouxe um branco com manchas grandes, rajadas, adquirido nas minas de ouro do Morro Velho. Esses cães eu os distribuía entre os amigos, porque, naquele tempo, cachorro não se comprava, “se arrumava”, e eu, já inteiramente conquistado pelo temperamento e caráter do Fila, queria divulgá-lo, pois já o considerava muito superior, em utilidade, às raças então importadas.
Minha atividade divulgou-se, e as publicações especializadas – que na época nasciam e fechavam rapidamente – procuravam-me, insistentemente, para transmitir minhas experiências. Foi o que fiz: relatei o que via nas fazendas. Via pretos, embora muito poucos, e os fazendeiros garantiam que eram Filas logo eu os repetia. Que sabia eu para contrariá-los?
Hoje, tendo ainda na memória algumas cenas daqueles poucos cães pretos, e algum conhecimento zootécnico, posso afirmar que eram Dinamarqueses sem orelhas operadas, e não Filas.
Os Filas começaram a aparecer nas exposições, julgados, invariavelmente, pelo Sr. Tito Pacheco, criador de Fox Terriers de Pelo Liso. Os juizes estrangeiros mostravam-se curiosos, pediam o padrão. ...e não havia padrão.
Adolpho Lourenço Rheingantz, então um dos grandes impulsionadores da cinofilia, presidente, por dezenas de anos do Kenel Clube Paulista, procurou-me certo dia e pediu-me para elaborar o padrão do Fila. Confessou-me o constrangimento que sentia a ser interpelado a respeito pelos juizes estrangeiros. Geralmente não confessava a inexistência do padrão e prometia traduzi-lo e remetê-lo. A hora havia chegado, pois alguns deles cobravam a promessa. E eu, moço e ousado, senti-me “salvador da honra de cinofilia brasileira”, redigindo às pressas um padrão e entregando-o ao Sr. Rheingantz, para que pudesse traduzir e remeter às demais nações. Assim ele o fez, não sem antes submeter meu trabalho ao Sr. João Ebner – que possuía um casal de Filas – e ao Dr. Waldemar Rathsam, veterinário e entusiasta da raça.
Hoje, perdoem-me a imodéstia, relendo aquele padrão, não me envergonho de tê-lo escrito. É um simples relato somático e mental do Fila, sem qualquer informação técnica, mas, em linhas gerais, não me envergonha.
Os anos se passaram e, numa exposição, na sede de campo do KCP ( ainda havia verificação de raça para o Fila), surgiu, pleiteando registro, um péssimo Dinamarquês, péssimo porque de pernas curtas e com uma barbela imensa. Não recordo mais o nome do juiz, mas o registro foi negado, deixando o proprietário furiosíssimo, argumentando com a barbela como prova de pureza rácica.
Foi esse o primeiro “Fila” preto que vi numa pista. Observem que escrevo “Fila” entre aspas.
Transcorreram os anos e, certa feita, o Dr. Ênio Monte, do canil ABC avisou-me haver adquirido, no interior, um Fila preto-azeviche. Fui vê-lo. Era um péssimo Dinamarquês. Alertei Ênio sobre os perigos dos genes vinculados à cor e dos caracteres desconhecidos que poderiam acompanhar a cor preta... mas o cão já havia sido usado. A ninhada era típica de Dinamarqueses: todos fininhos, pernaltinhas, magrinhos, pretinhos. O Dr. Ênio não teve dúvida, vendeu todos para o Rio. Não sem antes registrar a ninhada, com todos os filhotes recebendo nomes iniciados com a letra “Y”.
Ainda mas tarde o mesmo Dr. Ênio Monte, avisou-me da aquisição de outro preto, mais de uma ninhada com vários irmãos rajados, o que afiançaria a sua tipicidade.
Lembrei a Ênio Monte que o Dinamarquês também tem pelagem rajada e o problema da recessividade – ou seja, cães rajados, com ascendentes pretos, poderão certamente produzir filhos pretos; assim sendo, mesmo os irmãos rajados desse cão poderiam produzir pretos. A cor, portanto, não era essencial e sim os demais caracteres somáticos que a acompanhavam.
Foram estes os únicos pretos que conheci, envolvidos com a raça Fila.
Depois, afastei-me na cinofilia. Agora, ao retornar, deparo com esse quadro desolador: pretos em grandes quantidades, que, se dizem Filas. Pela quantidade, não podem ter sido produzidos por aqueles dois.
Insisto num ponto: os caracteres somáticos vinculados à cor preta é o que confirmam a origem ilegítima do cruzamento com Dinamarqueses: a) tipo geral longilíneo; b) figura quadrada; c) pernaltas; d) tórax estreito; e) ombros deslocados para a frente; f) falta de ante-peito; g) ventre esgalgado; h) pescoço comprido; i) cabeça estreita e comprida; j) orelhas pequenas, finas, de inserção alta; k) pele esticada; l) temperamento fraco.
Nem todos reúnem a totalidade de desses detalhes, pois foram cruzados com Filas, numa extensão maior ou menor, mas alguns desses caracteres sempre estarão presentes.
Para melhor compreensão, lembramos que o mesmo ocorre entre os humanos: acompanhando a cor preta, são transmitidos outros caracteres a ela geneticamente vinculados: a) cabelo crespo; b) testa curta; c) nariz chato e largo; d) orelhas pequenas; e) lábios grossos; f) voz pastosa; h) crânio pequeno; i) ombros largos; j) tronco curto; k) braço longos; l) pernas compridas; m) pés chatos; n) calcanhares salientes.
Nem os pretos apresentam esse conjunto de caracteres mas eles sempre estarão presentes, em número tal que afastará qualquer dúvida sobre sua pureza rácica; ou mesclados com outros, de outras raças, esses caracteres sempre constituirão prova da mestiçagem.
Em suma, esses caracteres presentes, em número maior ou menor, em cada indivíduo, informam sobre a mestiçagem. Pouco importará a presença, concomitante, de caracteres de Fila. A constatação, num mesmo indivíduo, de caracteres de raças diversas prova, insofismavelmente, a miscigenação.
Em Belo Horizonte trouxeram-me, para a pista, um cão rajado, com manchas arlequins na cabeça, e outro preto-aviche, mas com o tórax arlequim. Como a única raça canina do mundo, com pelagem arlequim, é o Dinamarquês, não foi preciso consultar o Prof. Procópio do vale para saber que eram “Filamarqueses”.
Resumindo, Fila puro, preto, não existe. Mestiços de fila com Dinamarquês têm alguns dos caracteres enumerados e a cor é preto-azeviche, lustrosa.
Mestiço de Fila com Mastim Napolitano também pode nascer preto, mas a cor é preto-ardósia e os caracteres são estes outros: a) tipo forte brevilíneo (atarracado); b) figura retangular longa; c) pernas curtas; d) tórax largo e “de rede”; e) ventre esgalgado; f) muita barbela ou papada; g) crânio muito largo; h) orelhas de inserção alta; i) “stop” abrupto, formado pelo frontal (testudo); j) parótidas inchadas; k) focinho curto, de profundidade maior que o comprimento; l) rima labial em ângulo agudo; m) mordedura em torquês ou apresentando prognatismo inferior; n) expressão cansada, aborrecida, quase sempre ofegantes.
Repito: a existência desses todos ou de alguns desses caracteres, prova a mestiçagem, porque eles não poderiam, sem miscigenação, aparecer numa raça que não os tem.
Portanto, quando leio anúncios de ninhadas de Filas pretos, sinto uma grande pena do criador: ele está tão por fora como eu em 1950/51, ou então é um grande desonesto.
O Fila – Boletim Mensal do CAFIB, ano 1, nº 7 – junho de 1979

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